sábado, 23 de fevereiro de 2008

Casas eternas

A casa de meu avô... / Nunca pensei que ela acabasse! / Tudo lá parecia impregnado de eternidade.
Manuel Bandeira
(encontrado aqui)

A casa do meu Avô era a nossa morada em Lisboa, antes de ir viver para lá! Lembro-me da sala de estar de porta fechada nas noites de Natal, porque o Pai-Natal entrava pela varanda. Lembro-me da mesa onde ele estudava e preparava as suas aulas, tinha sempre um candeeiro antigo. Ainda ouço os seus passos ao longo do corredor quando ia buscar chocolates ao quarto, depois do jantar ou quando ia procurar um livro. Para todas as noites havia uma história que vinha documentada pelos livros com imagens que nos mostrava depois da história acabada. E dizia:

- Já viu. Pode ver o livro todo. - E lá ficava meia noite a folhear o daquele dia. Sempre com delicadeza, página a página.

Era o cantinho do meu avô, aquela sala, onde se sentava no sofá, com o comando arrumado na sua barriga, que fazia de prateleira, quando era uma bola de futebol. Hoje que ele já não está cá, a casa acabou. Nela moram outros móveis e a minha tia. Os seus livros moram na minha casa, assim como alguns móveis. Esses são os pedaços de eternidade que andam comigo para toda a parte.


Mas a Avó Lena tinha duas. Uma parecia eterna, com o seu piano, que agora já não está lá, tal como a minha avó. A outra parecia eterna quando eu vivia lá, mas renasceu, tal como a minha avó, quando regressou a ela.

Tudo diferente. As cores, as colchas da cama, a disposição das relíquias e dos sorrisos nas molduras, o romance do passado de uma família grande. O chão é novo e já não me assusta quando corro nele, porque fazia barulhos estranhos que eu julgava fantasmas. O quarto escuro tem agora muita luz e até uma janela, mas desse eu nunca tive medo. O meu armário, com o espelho já escuro, não sei onde terá ido parar, talvez a outro quarto. O meu quarto também já não é o meu, de berço de dossel e camas de grades para as pestes saltitantes que nasceram depois de mim. A sala está maior e a lareira tem um banquinho que é meu, ou de quem o apanhar primeiro, como se fosse um jogo das cadeiras. As mantinhas do sofá, essas sim são todas minhas, porque sou das poucas que as abraço e aqueço com o saco-de-água quente.

A entrada é igual, mas já não tem um escritório ao fundo, mas um ao lado, com a secretária preciosa do meu avô, apesar de nunca o ter visto lá. A cozinha já não tem caixas de bolachas no cantinho, mas tem as compotas da avó, o cesto do pão e as tranças que estão sempre cortadas em fatias certinhas. Os bancos do jardim continuam no sítio, ladeados por silvas onde um dia alguém cai, na tentativa de ir buscar as maiores amoras. O chão continua traiçoeiro, porque por baixo dele vivem as raízes da pimenteira que não pára de crescer. E quando corro nele para abraçar a minha avó tenho de fechar os olhos para me lembrar das armadilhas da raiz. Quase que me lembro de como me sentava numa cadeira de palha a ler o livro do Bambi, porque não me cansava de ficar triste com a morte da sua mãe. Eu queria ver se a história se alterava a cada leitura, mas isso nunca aconteceu. A casa da minha Avó ainda é dela, ainda vive, em passos pequeninos que se alegram nas noites de Natal e de festa, entre mantinhas à lareira ou sentados na mesa comprida e posta a rigor, sobre uma toalha de linho.

A casa da minha avó ainda vive porque, no sofá da sala, em frente à lareira, ainda se senta, sempre no mesmo lugar, a minha menina magrinha, com os seus óculos perto, e as suas mãos enrugadas, debaixo de uma manta cinzenta, que traz sempre no colo.

Ali os arredores são acolhedores e nos dias de sol, sentamo-nos no jardim e ficamos a ver o dia passar, com a melodia do vento a passar entre as árvores e flores que a minha avó ainda cuida.


Por isso, a casa da minha avó nunca vai acabar enquanto ela e as nossas memórias se passearem por ela.

6 comentários:

Ricardo António Alves disse...

Alegra-me que um post do Abencerragem tenha suscitado, ou pelo menos servido de epígrafe a um texto com tantas vidas dentro.

Tangerina disse...

Olá! Quando li este excerto lembrei-me de escrever sobre a casa dos meus avós... e nasceu este texto!

beijinhos e obrigada pela visita

ana v. disse...

O texto está lindo, Sofia.

Tangerina disse...

Obrigada Ana. Sabes onde o escrevi? Adivinha lá...
Estava a escrevê-lo muito concentrada quando alguém resolveu interroper a minha escrita para quase me fazer desmaiar... Já sabes a resposta?
beijinhos

-JÚLIA MOURA LOPES- disse...

eu acho que a casa dos teus avós tem a eternidade dentro de ti. Felizes de nós que usufruimos dela.

Comoveu-me, pois lembrei-me dos meus.

beijo grande

Tangerina disse...

Serão sempre eternas as lembranças daquelas casas... espero um dia ter uma casa assim, de memórias eternas!

beijos