sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Gomos de ternura (I)

(H. Foscket, encontrado aqui)
(...)
Que eu feche os olhos e me leve o vento!
Que cada dia seja o meu primeiro!
Que eu saiba sempre fazer um veleiro
do banco de jardim onde me sento...

Marés Cheias (Ana Vidal)

Era desejo meu o dos teus abraços de enlace nos meus. Ver-te chegar além do portão aberto, ver-te caminhar, naquele passo compassado, pontapeando as pedras que te surgem, como fazias outrora, quando ainda eras menino e te traziam a ver-me.

Vejo-te chegar e ainda estou na ombreira da porta desde sempre verde. Quando avisto o sorriso e vejo que já me vês, seguro a ponta do vestido e corro para os teus braços, como desde sempre corremos para os braços um do outro. Deixamo-nos cair neles, rodando e rodando, apertando muito para nos sentirmos mais nós. Pegas-me na cintura e rodas-me no ar, como se faz às meninas pequeninas. Olhas-me nos olhos, fecho os braços em cruz e deixo que me abraces tu. Ponho a cabeça debaixo do teu queixo e deixo que os teus beijos me aqueçam e me saciem de tanto tempo longe deles. Penteias-me os cabelos desalinhados e seguras-me no rosto tímido por te olhar. Estás na mesma, o mesmo sorriso, o mesmo olhar, a mesma alegria que me invade quando te olho a medo de te ver. Seguras-me na mão, puxas levemente o meu corpo e levas-me a passear, por entre os campos onde um dia já corremos juntos. Chegamos ao fim do campo que não acaba e sentamos no banco de jardim que nos viu crescer. Onde sempre deitei a cabeça no teu colo, entre gargalhadas e sonhos traídos que viravam lágrimas. Sentas tu e ao teu colo o meu rosto, pousado nas minhas mãos juntas em prece. Abraças-me e de novo olhamos juntos o infinito e o mundo, o campo que não acaba nunca e a nossa eternidade.

sábado, 23 de fevereiro de 2008

Casas eternas

A casa de meu avô... / Nunca pensei que ela acabasse! / Tudo lá parecia impregnado de eternidade.
Manuel Bandeira
(encontrado aqui)

A casa do meu Avô era a nossa morada em Lisboa, antes de ir viver para lá! Lembro-me da sala de estar de porta fechada nas noites de Natal, porque o Pai-Natal entrava pela varanda. Lembro-me da mesa onde ele estudava e preparava as suas aulas, tinha sempre um candeeiro antigo. Ainda ouço os seus passos ao longo do corredor quando ia buscar chocolates ao quarto, depois do jantar ou quando ia procurar um livro. Para todas as noites havia uma história que vinha documentada pelos livros com imagens que nos mostrava depois da história acabada. E dizia:

- Já viu. Pode ver o livro todo. - E lá ficava meia noite a folhear o daquele dia. Sempre com delicadeza, página a página.

Era o cantinho do meu avô, aquela sala, onde se sentava no sofá, com o comando arrumado na sua barriga, que fazia de prateleira, quando era uma bola de futebol. Hoje que ele já não está cá, a casa acabou. Nela moram outros móveis e a minha tia. Os seus livros moram na minha casa, assim como alguns móveis. Esses são os pedaços de eternidade que andam comigo para toda a parte.


Mas a Avó Lena tinha duas. Uma parecia eterna, com o seu piano, que agora já não está lá, tal como a minha avó. A outra parecia eterna quando eu vivia lá, mas renasceu, tal como a minha avó, quando regressou a ela.

Tudo diferente. As cores, as colchas da cama, a disposição das relíquias e dos sorrisos nas molduras, o romance do passado de uma família grande. O chão é novo e já não me assusta quando corro nele, porque fazia barulhos estranhos que eu julgava fantasmas. O quarto escuro tem agora muita luz e até uma janela, mas desse eu nunca tive medo. O meu armário, com o espelho já escuro, não sei onde terá ido parar, talvez a outro quarto. O meu quarto também já não é o meu, de berço de dossel e camas de grades para as pestes saltitantes que nasceram depois de mim. A sala está maior e a lareira tem um banquinho que é meu, ou de quem o apanhar primeiro, como se fosse um jogo das cadeiras. As mantinhas do sofá, essas sim são todas minhas, porque sou das poucas que as abraço e aqueço com o saco-de-água quente.

A entrada é igual, mas já não tem um escritório ao fundo, mas um ao lado, com a secretária preciosa do meu avô, apesar de nunca o ter visto lá. A cozinha já não tem caixas de bolachas no cantinho, mas tem as compotas da avó, o cesto do pão e as tranças que estão sempre cortadas em fatias certinhas. Os bancos do jardim continuam no sítio, ladeados por silvas onde um dia alguém cai, na tentativa de ir buscar as maiores amoras. O chão continua traiçoeiro, porque por baixo dele vivem as raízes da pimenteira que não pára de crescer. E quando corro nele para abraçar a minha avó tenho de fechar os olhos para me lembrar das armadilhas da raiz. Quase que me lembro de como me sentava numa cadeira de palha a ler o livro do Bambi, porque não me cansava de ficar triste com a morte da sua mãe. Eu queria ver se a história se alterava a cada leitura, mas isso nunca aconteceu. A casa da minha Avó ainda é dela, ainda vive, em passos pequeninos que se alegram nas noites de Natal e de festa, entre mantinhas à lareira ou sentados na mesa comprida e posta a rigor, sobre uma toalha de linho.

A casa da minha avó ainda vive porque, no sofá da sala, em frente à lareira, ainda se senta, sempre no mesmo lugar, a minha menina magrinha, com os seus óculos perto, e as suas mãos enrugadas, debaixo de uma manta cinzenta, que traz sempre no colo.

Ali os arredores são acolhedores e nos dias de sol, sentamo-nos no jardim e ficamos a ver o dia passar, com a melodia do vento a passar entre as árvores e flores que a minha avó ainda cuida.


Por isso, a casa da minha avó nunca vai acabar enquanto ela e as nossas memórias se passearem por ela.

sábado, 16 de fevereiro de 2008


Pequenos prazeres (II)

Entrar em casa e o cheiro a sopa acabada de ferver uma última vez, na sua primeira cozedura. O cheiro a mundo novo que se espalha pela casa, que se entranha em nós. Espreitar na cozinha, entrar na panela e assistir ao último borbulhar de um lume já apagado. Pegar na concha da sopa e deixá-la mergulhar até ouvir o fundo do tacho, trazer ao de cima o suco dos vegetais pescados a dedo na mercearia do lado. Deitar num prato grande e branco e ver a sua cor escorregar por entre as bordas - verdes, laranja-cenoura, encarnado-tomate, com letras ou estrelas, massinhas ou salpicada de ripas de couve, com pedaços ou passada.
Pousar a colher, mexer devagar, para um lado e para o outro. Encher a colher e trazê-la a pairar no ar ao nariz para cheirar, à boca para provar e sentir o queimar do céu da boca...
A magia da sopa acabada de fazer, acabada de deitar no prato, não se compara nunca a nenhuma das vezes em que recai na panela para voltar a borbulhar. Pequeno prazer o de poder provar a sopa nova e o sabor da primeira colherada que queima a boca, mas aquece a alma.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Um pequeno prazer (I)


O passear no campo, quando ainda é Inverno. Sair pela manhã e sentir os cheiros da madrugada acabada de deitar. Pisar as folhas caídas e ainda molhadas da humidade da noite e sentir o cheiro a novo, tal como o dia que acaba de surgir. Do outro lado da montanha o sol começa a erguer-se e vai subindo no céu, aquecendo pouco, mas trazendo o brilho ao dia, às cores e aos campos. São de trigo, de couves e baldios que se espalham nos campos em arco-íris coloridos. É o prazer dessa maresia do campo que trago dos fins-de-semana em que o sol me desperta por entre as portadas já empenadas e sem fecho, deixando que ele mesmo as vá abrindo de par-em-par, à medida que se ergue no céu.

Levanto-me da cama, vou à janela, fecho os olhos e respiro a brisa da manhã… imemorial esse cheiro, esse ar, esse vento, esse sabor… Algures um pequeno-almoço rápido e um desafio de caminhada. A laranjeira à minha espera para lhe roubar a mais redonda laranjas, os campos salpicados de azedas que colho sem distinção, só para provar o ácido do seu caule, que vou mastigando. Ao cimo do monte, uma mesa e a vista para o mundo todo – a liberdade! Ali é bom dia, é manhã e são memórias desse prazer!

sábado, 9 de fevereiro de 2008

Memórias de prazer

Pêssegos, pêras, laranjas,
morangos, cerejas, figos,
maçãs, melão, melancia,
ó música de meus sentidos,
pura delícia da língua;
deixai-me agora falar
do fruto que me fascina,
pelo sabor, pela cor,
pelo aroma das sílabas:
tangerina, tangerina.


Eugénio de Andrade

O rebuliço do dia-a-dia esconde, muitas vezes, por detrás do apressado compasso, os pequenos prazeres da vida. Este blogue, ainda pequeno, como os gomos de uma tangerina, traz à luz dos meus dias os instantes, os pedaços, os gomos da realidade. É a beleza do redescoberto em cada dia, do relembrado depois de quase esquecido, a magia dos olhos mais despertos para o simples dos sentidos. Aliando a poesia, a prosa e a música ao mundo da cozinha doce e salgada pretendo encontrar o prazer do simples.

A quem por aqui passe, deixe os seus instantes, os seus gomos, os pequenos prazeres da vida, tal como o primerio gomo que provamos - o sumo, o sabor, o ácido ou doce e a memória que fica dessa experiência de prazer.

Melodia inaugural


Todos vieram
Ver a menina
Ao primeiro gomo de tangerina
Menina atenta
Não experimenta
Sem primeiro
Saber do cheiro
O sabor dos lábios
Gestos sábios

Fruta esquisita
Menina aflita
Ao primeiro gomo da tangerina
Amarga e doce
Como se fosse
Essa hora
Em que chora
E depois dobra o riso
E assim faz seu juízo

Sumo na vida
É o que eu te desejo
Rumo na vida
Um beijo
Um beijo

Ah, que se lembre
Sempre a menina
Do primeiro gomo da tangerina
P'ra vida dentro
É esse o centro
Da parcela da vitamina
Que a faz crescer
Sempre menina

A terra é grande
É pequenina
Do tamanho apenas da tangerina
Quem mata e morre
Nunca percorre
Os caminhos do que há de melhor
Nesse sumo
A vida, gomo a gomo

Sumo na vida
É o que eu te desejo
Rumo na vida
Um beijo
Um beijo


Sérgio Godinho in Tinta Permanente